A juíza Joselia Lehner Freitas Fajardo, da Vara Cível de Planaltina, no Distrito Federal, criticou o regime das impenhorabilidades do novo Código de Processo Civil em uma decisão em que determinou a suspensão das carteiras de habilitações do ex-senador Valmir Antonio Amaral e seus familiares, além da apreensão dos passaportes, para garantir o pagamento de dívida de mais de R$ 8 milhões.
Os credores, defendidos pelo escritório de advocacia neolaw., estão tentando receber o dinheiro, mas ainda não foram encontrados bens para penhora após dois anos de processo. Por isso, a juíza aceitou o pedido para suspender as CNHs e apreender os passaportes. Ela justificou a decisão por entender que o ex-senador está tentando ocultar bens para que a dívida não seja executada.
“Há que se considerar que se os executados não dispõem de dinheiro suficiente para o pagamento de seus débitos, também não dispõem de numerário para custear as dispendiosas viagens ao exterior. Atualmente no Brasil apenas viaja para o exterior as pessoas com alto padrão aquisitivo, tendo em vista a alta do dólar e o período de recessão econômica. No mesmo sentido, se não possuem de veículos, também não precisarão de carteira de habilitação para dirigir”, disse na decisão.
Em relação ao novo CPC, Joselia afirma que os bens listados como impenhoráveis deveriam ser reduzidos. E lembra que, ao mesmo tempo, o CPC permitiu ao juiz adotar medidas restritivas de direitos para fazer com que a dívida seja quitada, como a suspensão da habilitação. “No meu modesto entender esse modelo é incoerente, eis que muito mais efetiva se tornaria a execução por obrigação de pagar se fosse permitida a penhora de 10% do salário, se fosse limitado o valor do bem de família, se não fosse inserida a impenhorabilidade da quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 salários-mínimos”, afirma a juíza.
Não é a primeira vez que um juiz no Brasil suspende habilitações como forma de garantir a execução de dívidas. Tampouco o assunto é livre de polêmicas no meio jurídico. Em setembro deste ano, a juíza Andrea Musa, da 2ª Vara Cível de Pinheiros, na capital paulista, suspendeu a carteira de habilitação, apreendeu o passaporte e cancelou o cartão de crédito de um réu até que ele pague uma dívida. “Se o executado não tem como solver a presente dívida, também não tem recursos para viagens internacionais, ou para manter um veículo, ou mesmo manter um cartão de crédito. Se porém, mantiver tais atividades, poderá quitar a dívida, razão pela qual a medida coercitiva poderá se mostrar efetiva”, disse.
A decisão foi anulada liminarmente em seguida pela 30ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Para o desembargador Marcos Ramos, relator do caso, a decisão de primeira instância fere o direito de ir e vir do réu. “Em que pese a nova sistemática trazida pelo artigo 139, IV, do CPC/2015, deve-se considerar que a base estrutural do ordenamento jurídico é a Constituição, que em seu artigo 5º, XV, consagra o direito de ir e vir.”
Na época, o ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União, fez comentários a respeito de decisões desse tipo em artigo publicado na imprensa. Para ele, instrumentos que permitam o cumprimento forçado de contratos e o pagamento de dívidas são necessários, mas é preciso equilibrar essa exigência com a liberdade e a dignidade humana. “Nessa ordem de ideias, é difícil conceber que a Constituição permita a um juiz proibir o uso do elevador por morador do edifício, a fim de forçá-lo a pagar a dívida com o condomínio. Tampouco poderia o magistrado suspender o serviço de TV a cabo ou de banda larga da residência do devedor até que seja pago um débito com a escola de seus filhos.”
Segundo ele, por mais caricatos que possam parecer esses exemplos, eles se aproximam, em algo essencial, da decisão de suspender a carteira de motorista e o passaporte do devedor porque abandonam a regra da responsabilidade patrimonial e atingem o núcleo de direitos inerentes à condição humana, limitando o direito de ir e vir. “Não há dúvidas de que, se fosse constitucional e aplicada amplamente, a polêmica interpretação do art. 139, inciso IV do CPC, poderia reduzir nossos índices de inadimplência. Todavia, o retrocesso civilizatório e o custo social seriam insuportáveis”, disse o ministro.
Fonte: ConJur