Por Ana Carolina Ribeiro de Oliveira Mendes e Lara Corrêa Sabino Bresciani
O Regime de Previdência Complementar, previsto no artigo 202 da Constituição Federal, tem natureza de direito privado, com caráter facultativo e, como o próprio nome revela, possui caráter complementar e autônomo em relação ao regime geral de previdência social (INSS). Uma de suas principais características é a natureza contratual, que está intimamente ligada à necessidade de prévia formação das reservas destinadas à garantia de pagamento dos benefícios contratados, eis que somente haverá o prévio custeio para aqueles benefícios expressamente previstos no regulamento do plano de benefícios.
A disciplina legal do referido regime fica a cargo das Leis Complementares 108 e 109, ambas de 2001.
De alguns anos para cá, o Regime de Previdência Complementar vem enfrentando uma intensa judicialização de questões atinentes à complementação de aposentadoria contratada pelos participantes, especialmente em relação às entidades fechadas de previdência complementar (EFPCs), também chamadas de “Fundos de Pensão”.
As Entidades Fechadas de Previdência Complementar não possuem finalidade lucrativa (artigo 31, parágrafo 1° da Lei Complementar 109/2001). Também se constata ampla participação dos representantes dos participantes e assistidos nos órgãos de gestão e fiscalização das EFPCs, o que não ocorre nas entidades abertas de previdência complementar.
As relações jurídicas havidas entre as EFPCs e seus participantes são, em regra, de longa duração, na medida em que tendem a perdurar durante toda a vida laborativa do participante (fase acumulativa), adentrando o período de inatividade (fase concessiva), podendo, ainda, estender seus efeitos para além da vida do próprio participante (caso haja previsão de pagamento de valores aos beneficiários, por exemplo).
Além disso, tais relações jurídicas são pautadas pelo mutualismo ou solidariedade, decorrente do fato de que os valores vertidos para o fundo comum do plano de benefícios administrado pelas EFPCs pertencem aos seus participantes e beneficiários. Assim, eventual insuficiência financeira do plano é de responsabilidade de todos (participantes, assistidos e patrocinador — artigo 21 da Lei Complementar 109/2001).
O Superior Tribunal de Justiça, na qualidade de corte superior responsável por garantir a autoridade da legislação federal, após fazer um debate mais aprofundado sobre temas afetos ao Regime de Previdência Complementar (o que, até então, não havia acontecido), passou a proclamar a necessidade de observância da Legislação Especial da Previdência Complementar e do previsto no contrato previdenciário.
A mudança de jurisprudência deu-se, inicialmente, com a apreciação do REsp 1.023.053/RS, ocorrida em novembro de 2011 (DJe de 16.12.2011), sob a relatoria da ministra Maria Isabel Gallotti. No referido julgamento, o STJ reviu uma jurisprudência de mais de uma década, construída anteriormente às Leis Complementares 108 e 109, ambas de 2001. Após intensos e aprofundados debates, o STJ reconheceu a impossibilidade de se estender a verba chamada “auxílio cesta-alimentação (ACA)” aos benefícios da previdência complementar.
Posteriormente ao referido julgamento, a tese acolhida naquele primeiro precedente foi submetida a julgamento pelo rito dos Recursos Repetitivos (artigo 543-C do Código de Processo Civil) e, em junho de 2012, com o julgamento do REsp 1.207.071/RJ (DJe de 08.08.2012), também de relatoria da ministra Maria Isabel Gallotti, a 2ª Seção do STJ consagrou, em definitivo, aquele entendimento.
Decidiu-se, em síntese, que, para se apreciar a possibilidade de eventual inclusão de verbas nos proventos de complementação de aposentadoria pagos pelas entidades fechadas de previdência complementar, independentemente da natureza da verba (remuneratória ou indenizatória), deve-se, necessariamente, observar o disposto no contrato previdenciário, bem como a vedação expressa no artigo 3º, da Lei Complementar 108/2001. De acordo com o referido dispositivo legal, é vedada a inclusão nos benefícios concedidos de ganhos de produtividade, abonos e vantagens de quaisquer natureza.
O STJ entendeu que as regras do Regime de Previdência Complementar não se confundem com as do Regime Geral de Previdência Social. Além disso, se a verba pleiteada por um participante ou assistido de plano de previdência complementar não consta do contrato previdenciário e, por consequência, não houve custeio para incorporação da referida vantagem, não se pode obrigar o fundo de previdência ao seu pagamento, sob pena de abalo do equilíbrio financeiro e atuarial do plano previdenciário.
O acórdão proferido quando daquele julgamento reconheceu diversos princípios relevantes aplicáveis a todo o Regime de Previdência Complementar, tendo afirmado que “a extensão de vantagens pecuniárias … de forma direta e automática, aos proventos de complementação de aposentadoria …, independentemente de previsão de custeio para o plano de benefícios correspondente, não se compatibiliza com o princípio do mutualismo inerente ao regime fechado de previdência privada”.
Na sequência de tais julgamentos, o STJ também aprofundou o exame de outra tese jurídica que ameaçava a credibilidade e a solvência dos planos de previdência complementar, isto é, a extensão de “abonos” aos benefícios pagos pelas Entidades Fechadas de Previdência Complementar. Na apreciação do REsp 1.281.690/RS, de relatoria do ministro Antonio Carlos Ferreira, entendeu-se que tal extensão era descabida. Esse entendimento, em harmonia com os princípios e regras que orientam a previdência complementar, teve seu ápice no julgamento do REsp 1.425.326/RS, ocorrido em maio de 2014 (DJe de 01.08.2014), de relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, cujo denso voto foi apreciado pela sistemática dos Recursos Repetitivos.
O Acórdão do REsp 1.425.326/RS, em sede de Recurso Repetitivo, fixou as seguintes teses para fins do disposto no art. 543-C do Código de Processo Civil: TESE “A”: “(…) é vedado o repasse de abono e vantagens de qualquer natureza para os benefícios em manutenção, sobretudo a partir da vigência da Lei Complementar nº 108/2001 (…)”; TESE “B”: “não é possível a concessão de verba não prevista no regulamento do plano de benefícios de previdência privada, em razão da previdência complementar ter como por pilar o sistema de capitalização, que pressupõe a acumulação de reservas para assegurar o custeio dos benefícios contratados, em um período de longo prazo”.
Como se verifica no referido Repetitivo, a Seção de Direito Privado do STJ pacificou a tese de que não se pode estender aos benefícios dos assistidos da previdência complementar “abonos” (independentemente da nomenclatura adotada) e vantagens de qualquer natureza, conforme disposto no artigo 3º, parágrafo único da Lei Complementar 108/2001. Ainda, foi reiterado o entendimento de que não é possível a concessão de verbas não previstas no contrato previdenciário (regulamento do plano). Isso porque, se a verba não está prevista em contrato, para ela não houve o prévio custeio. E determinar o seu pagamento causaria desequilíbrio financeiro e atuarial no plano de benefícios, em prejuízo de toda a coletividade de participantes e assistidos.
Recentemente, em complemento aos julgamentos anteriormente referidos, a 2ª Seção do STJ, uma vez mais, enfrentou questões relevantes do Regime Fechado de Previdência Complementar. Trata-se do julgamento do Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial 504.022/RS, de relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, ocorrido em setembro de 2014 (DJe de 30.09.2014).
No referido julgamento restou definido que a aplicação de expurgos inflacionários somente deve se dar nos casos em que ocorre o chamado “resgate”. Isso porque, “a Súmula 289/STJ, ao prescrever que a restituição das parcelas pagas pelo participante a plano de previdência privada deve ser objeto de correção plena, por índice que recomponha a efetiva desvalorização da moeda, deixa límpido que se cuida de hipótese em que há o definitivo rompimento do participante com o vínculo contratual de previdência complementar”. Tal definição tem grande relevância para o Regime de Previdência Privada, eis que encerra, de uma vez por todas, qualquer tentativa de aplicação dos chamados “expurgos inflacionários” para quaisquer outras hipóteses que não aquelas de resgate.
Quanto à validade de transações que embasam processos de migração entre planos de benefícios administrados por uma mesma EFPC, o acórdão consignou em sua ementa que “a migração – pactuada em transação – do participante de um plano de benefícios para outro administrado pela mesma entidade de previdência privada, facultada até mesmo aos assistidos, ocorre em um contexto de amplo redesenho da relação contratual previdenciária, com o concurso de vontades do patrocinador, da entidade fechada de previdência complementar, por meio de seu conselho deliberativo, e autorização prévia do órgão público fiscalizador, operando-se não o resgate de contribuições, mas a transferência de reservas de um plano de benefícios para outro, geralmente no interior da mesma entidade fechada de previdência complementar. (REIS, Adacir. Curso básico de previdência complementar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 76). (…)”.
Segundo o acórdão, acolhido à unanimidade pela 2ª Seção do STJ, quando se trata de transação, há que se verificar que essa espécie de negócio jurídico só se rescinde por dolo, coação ou erro essencial quanto à pessoa ou coisa controversa (artigo 840 do CC/02). Isso porque, “a transação, com observância das exigências legais, sem demonstração de algum vício, é ato jurídico perfeito e acabado, não podendo o simples arrependimento unilateral de uma das partes dar ensejo à anulação do acordo”. Ainda, o acórdão registra que se deve observar a regra da indivisibilidade da transação, segundo a qual, sendo nula uma das cláusulas da transação, nula será esta em seu conjunto (artigo 848 do CC/02).
Toda transação implica em ônus e bônus para as partes que celebram, mediante concessões mútuas, o acordo. Por essa razão não se podem anular somente as cláusulas que tragam eventuais ônus para o participante de plano de previdência, preservando-lhe os bônus decorrentes da transação. Conforme decidiu a 2ª Seção do STJ, se for caso de anulação da transação (o que pode ocorrer somente em casos de dolo, coação ou erro), deve a avença ser integralmente anulada.
Por fim, verifica-se que o acórdão do AgRg no AREsp 504.022/SC inaugurou um novo paradigma quanto à aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) à relação de previdência complementar. Isso porque, se entendeu que o CDC não se sobrepõe às normas específicas da Previdência Complementar e ao instituto da transação, previsto no Código Civil, pois, “é descabida a aplicação do Código de Defesa do Consumidor alheia às normas específicas inerentes à relação contratual de previdência privada complementar e à modalidade contratual da transação, negócio jurídico disciplinado pelo Código Civil, inclusive no tocante à disciplina peculiar para o seu desfazimento”.
Embora o considerável avanço verificado na adoção do entendimento acima, vale registrar que, no tocante ao CDC, ainda sobrevive o desafio de se conferir a melhor interpretação à Súmula 321 do STJ, de modo a limitar a sua aplicação às entidades abertas de previdência complementar, cujos planos previdenciários, estes sim, são comercializados no mercado e, portanto, se sujeitam à incidência do CDC.
Os julgamentos aqui citados evidenciam que o Poder Judiciário, especialmente o STJ, passou a ter uma melhor compreensão do Regime Fechado de Previdência Complementar, tendo atentado para o fato de que, em última análise, uma demanda ajuizada contra uma EFPC não é um conflito entre a entidade e os participantes, mas sim, um conflito entre os próprios participantes e assistidos. Isso decorre do mutualismo e da solidariedade inerentes ao referido regime (os recursos pertencem aos participantes, que compartilham dos resultados — positivos ou negativos — do plano previdenciário).
O atual posicionamento do STJ acerca de diversos temas afetos ao Regime Fechado de Previdência Complementar caminha na linha de conferir ao referido regime a indispensável segurança jurídica de que ele necessita, tendo em vista que, somente fazendo valer os princípios e regras próprios, dentre os quais cabe destacar o respeito ao contrato previdenciário e a necessidade de prévio custeio, as EFPCs poderão honrar com suas obrigações de longo prazo.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 24 de outubro de 2014, 7h33